Por Henrique Maynart*
A vida seguia estabanada e esvoaçante na
época em que fui marcado naquele post maldito e oportuno, que
resgatava os cheiros e as gaitadas, as imagens e sons de antigas
euforias. Aquele post que raspava com a navalha do tempo, surpreso e
esbaforido, o fundo carcomido do pote da memória. Facebook dos meus pecados.
Todos devidamente marcados,
identificados e intimados a curtir e comentar aquele encontro postado no mural
de Gui, e ai de quem não agisse como manda a etiqueta das redes sociais. Era
melhor curtir. Tal como esperado todos os marcados curtiram, comentaram e
reviveram aquela imagem, cada um a seu tempo. As cores parcas descoladas do
papel de filme, as espinhas que habitavam o rosto, o semblante abobado daqueles
moleques, todos saciados das pequenas delícias de um feriado sassaricado na
malinagem e defumado na estufa do verão. Os mais novos devidamente posicionados
no colo dos mais velhos, risonhos e pretos de sol. Eu e Nana sentados na
cadeira branca denotando uma falsa imponência, o resto de pé. Eu estava
trajando uma camisa preta em pleno domingo, a boina, os óculos de Pimba
que sustento até estes dias - separando os olhos míopes do resto do mundo-
exalando a arrogância dos dissonantes e, pra fuleirar de vez com o que
resta da minha dignidade, com um dedinho na boca que punha em cheque a
procedência da sexualidade. Esta vocação pra dissidência ainda me mata.
Bem, ali estavam os netos de Aliete. Todos não, mas uma ruma boa.
Daquela foto brotava mais história que
chuchu na cerca. As peladas na casa da praia, os banhos de mangueira, as
peripécias de Brejo Grande, a patrulha salvadora na caça de “João da Lavina”,
criatura célebre que aterrorizava a noite dos ribeirinhos à margem direita do
Velho Chico. Além do útero da mesma vó como ponto de partida para este
mundo cão, o útero gasto e surrado da única mulher sã que esta família
produzira em três gerações, os netos de Aliete dividiam as camas, os livros do
colégio, as revistinhas da turma da Mônica, alguns feitos heróicos e façanhas
malinas, algumas bem malignas. Feitos dos tempos da fúria carola de tia Luizete
(é, mamãe era foda nos castigos) das patadas desembestadas de tio Kiko e
do chinelo engatilhado da notável Silvana, a tia caçula e temida por todos nós,
que nunca vacilava quando se tratava em dar uma prensa na molecada.
Eis que, em meio àquele dejavú eletrônico
coletivo, surge a idéia de juntar a primaiada num canto só. O “Encontro dos Netos de Aliete”,
que era pra juntar aquele bando de marmanjo espalhado no vento, enfurnados na
urgência de engolir o pão amassado pelo “coisa
ruim” e garantir a sobrevida do mês, pra poder respirar até morrer sem
direito a um suspiro qualquer. Evento no facebook, slogan e mote: Corra que Tia
Silvana vem aí! Tudo cortesia da Maynart
Produções! Nosso Negócio é um espetáculo, mas nossa receita é uma
tragédia (Chupa essa Del!), tudo nos trinques. Providos de algum
alvoroço e tomados pela disposição, a primaiada sela o bendito do dia,
hora e local do tão entusiasmado encontro. Dez de dezembro em Brejo Grande
na comemoração da festa da padroeira: Nossa Senhora da Conceição, Oxun
para os umbandistas e candomblecistas. Ê Brejo Grande, coração da foz do Velho
Chico, berço de uma fatia generosa da infância daqueles marmanjos.
Eis que a data embalada por todos nós
chacoalhou meu corpo fatigado naquela manhã de sábado. Cabeça estalada,
boca seca e sono de sobra. Ressaca do cão. Posto os pés na quentura regimental
de Brejo Grande, a casa de vó - na esquina em frente à Praça da luz, no bar de
finada Dolores- foi a nossa concentração. A primaiada ia chegando,
se abraçando e abarcando sua respectiva lata de cerveja. Ali não tinha nome nem
oficio nem status, só histórias e os velhos apelidos de infância,
carinhosos e vergonhosos por natureza. Codinomes de outros tempos.
Assim como em qualquer narrativa o
encontro carregava seus próprios personagens. Del era o mais velho dali, o que
transpirava algum respeito e lhe acarretava alguma responsabilidade sobre os
demais. Das figuras mais cômicas que já vi neste mundo. O cara que me
fizera pisar no Batistão pela primeira vez, os pés ainda meninos, pra ver um
Sergipe e Confiança qualquer. As primeiras revistinhas de putaria que li
foram as dele. Estava acompanhado de Acácia, amor recente, a fim de
revelar à moça as raízes de seu sorriso falho, dos olhos esbugalhados e da
cabeça grande que carrega sobre os ombros. Uma tática simples de se entender:
“Se ela agüentar este bando de marmanjo amarelo sem dar um pio a gente casa em
dois tempos”. Acho que deu certo, aguardo o convite pro ajuntamento.
Rafinha era, digamos assim, o “arquiteto
meio lelé” do comboio. Cara legal, inteligente e esforçado, meio estabanado
também. Hoje está forte feito um boi, mas na infância me rendera bons caldos na
piscina. Aquele ali sofreu na minha mão. Miguelzinho é o novo Bad Boy da
primaiada, tomou meu posto e eu nem havia reparado. Olhar cerrado e peito
estufado, a boca saliente e uma disposição pra pista que só ele.
Alfredinho, irmão do Bad Boy, é o mais recluso de todos. Pouca fala da voz grossa,
o riso crente que incomoda algo, alguém ou a ele mesmo no ato de escancarar os
dentes. Pouco bebe, pouco conversa e lê às pencas. Julinha, galega esguia
dos olhos da cor do Velho Chico na hora da cheia, era a caçula do bando e a
única mulher dentre os primos. Espírito de pagodeira no auge do fervor
colegial. Costumava brincar de cavalinho no meu ombro quando ainda miúda,
galopando nas dependências da antiga casa da Rafael de Aguiar, capaz de
lembrar. Os filhos do visigodo tio Kiko, visigodo e astuto na mesma
medida do paradoxo. Lucianinho me pareceu o mais centrado dos primos.
Baixinho, truncado e de olhar minguado, sóbrio e sereno, calculando até o mais
singelo aperto de mão. Gorete, sua companheira, segue o mesmo compasso no
trato. Casal simpático.
Gui sempre teve pinta de primo prodígio.
Filho de tia Rita, madrinha queridíssima de quase todos os primos, inclusive
deste que vos digita. Riso fácil de arrancar e algumas tiradas bem fantásticas
em meio a um gole e outro de cerveja, puxara a malandragem de Del e a gentileza
de Nana. Moleque bom. E finalmente este que vos digita, escrevinhador
imberbe com alguma fama de marginal, boca suja e pouca paciência.
Bebemos, rimos e nos revisitamos em meio
à imponente mesa na cozinha de vó, daquela casa antiga que carregava o aroma
acumulado de outras vidas. As canecas de louça de vô na sala, as velas e
imagens de Cristo na companhia feminina de algumas Nossas Senhoras,
disputando espaço no santuário na base do tapa. Casa de interior,
quartos grandes e sala reta, dorso comprido, o azulado claro dos azulejos
grudados na parede velha. A pia de mão ao lado da mesa da cozinha. Os gaiamuns
no quintal, os pés de carambola do outro lado do muro, as mesmas árvores
responsáveis por algumas fugidas e joelhos ralados. Fruta roubada é mais
gostosa. As galinhas de finada Dolores, velhinha doce que só ela, abria o
quintal pra que ajudássemos a jogar o milho e saciar a fome das danadas das
galinhas. Do lado de fora o mais do mesmo. As ruas estreitas, a bosta de cavalo
e o olhar vigilante das senhoras escoradas na janela. Informantes
assíduas e diligentes de vó. “Olhe, os meninos de Aliete bebendo a esta hora da
tarde!” Ruma de futriqueira, bom de arranjar uma trouxa de roupa pra desocupar
a mente dos comentários sórdidos. Os carroceiros de sempre, as carroças que
corríamos pra pegar o vácuo e curtir uma carona até lugar nenhum. Nana sempre
se estropiava nestas horas, nunca vi ninguém com tanta facilidade pra dar de
bunda no chão.
Fiquei de partir nas primeiras horas de
sol do domingo seguinte, perdi a hora, os compromissos e a oportunidade
de fugir de mais uma chamada de minha organização. Estava na merda,
chafurdemos então. Estava agendado para aquele dia o passeio de tototó até o
Cabeço, junto com os primos, os primos dos primos, os observadores
permanentes e uma figura mórbida que respondia pela graça de “Beleu”, moribundo
de procedência duvidosa e de empatia deplorável. A aparência tão bela quanto o
apelido. Trocando em miúdos, um cara chato, feio pra caralho e que brotou da
terra naquele tototó.
Encharcados de álcool no isopor que mais
parecia uma tartaruga, embarcamos no distinto tototó de “Seu Jorge” e
saímos deslizando pelo Velho Chico em direção à foz da banda alagoana do
rio. As mangueiras naturais no caminho, o rajado incômodo do motor, o excesso
no corpo e um sol satânico sobre nossas cabeças. Finalmente decidiram ligar o
som, fudeu. Me recolho solenemente à minha chapação por boa parte do
tempo, a água da garrafa que acompanhava o tremido do motor, os compromissos
perdidos e os desafetos que me aguardavam na volta para Aracaju. Com o
destino na ponta dos olhos estava na hora do tradicional pulo antes do
desembarque e alcançar a margem a nado. Zarpamos eu, Gui e
Del. O problema de revisitar os afãs de outros tempos é que, geralmente,
no presente a mente e o corpo são de fato diferentes, Belchior estava certo
mais uma vez. Não se trata mais daquele corpo e daquele fôlego juvenil que
transformava algumas braçadas em moleza, e assim foi. Quase morremos os três, mas
finalmente alcançamos a areia da foz, assustados, fudidos e arrombados.
Experiência de Quase Morte.
O dia seguiu no compasso dos excessos e
da fuleiragens familiares. Um primo tal que era conhecido por “JG” na família,
aquela aventura sexual a quatro dentro de um chiqueiro, outro que fora
encontrado compartilhando prazer bem debaixo do caminhão, pense numa vontade de
fuder que não passa. Umas histórias envolvendo o queijo do Poly Dance e
um primo ciumento, aquele cacete homérico que reunira quase todo mundo há
cerca de dois anos a custa de um pinguço de Piaçabuçu que, sem
lenço nem documento, incomodava Julinha e provocava Lucianinho ao mesmo
passo. Aquele ali apanhou como cachorro. Excessos e fuleiragens,
fuleiragens e excessos, e o feriado escorreu como de costume. De
volta ao QG de vó, pra fechar com maestria os trabalhos do Encontro dos Netos
de Aliete, o rango mais saboroso de todos os tempos, ao menos de todos aqueles
dias, cortesia de dona Telma. Não restou pra quem vacilasse. Tempero da terra
popularmente conhecido como Larica. Encharcamos a boca de feijão e carne
do sol, cabeça cheia e barriga vazia dá nisso.
Comemos, dormimos, despertamos e pegamos
o caminho de volta às alucinações do mundo cão, dos horários e compromissos,
das contas e correntes. Boa peleja aquele enlace dos filhos das tias, dos
sobrinhos e afilhados oriundos do útero de vó. Combinamos o mote do
segundo encontro, desta vez em Aracaju, a fim de viabilizar o resto da
primaiada ausente em Brejo Grande. De volta aos nomes e ofícios, às
preocupações mundanas do imediato. Um mundo que não abarca nossos
codinomes e malinagens perdidas no elo de nossa infância, onde os conflitos e
primazias transcendem a dúvida entre brincar na rua de baixo ou na rua de cima.
No estalar das coisas me convenço de que aquele encontro nadava contra a
correnteza dos tratos insossos dos dias de hoje, de encontro ao tempo, ao
espaço, ao templo de saudações convenientes. Boa peleja aquela dos netos de
Aliete, humanizar é preciso.
Primos, é sempre bom tê-los, conhecê-los de verdade. Se os tiver,
não os perca de vista.
*Jornalista, neto de Aliete, filho de Luizete e afilhado de Rita.
Codinome Quinho.