Por Henrique Maynart
Povoado
do Santo Antônio do Aracaju, 17 de março de 1855. No zigue-zague trôpego das ladeiras
do Santo Antônio, útero da capital de Serigy, o mulato Barbosa pôs aos pés do Rio Sergipe o novo
centro de comando desta parca província. Coisa mais que planejada, a segunda das
cidades do país daquele tempo, recortada em tabuleiro quente feito forma de
doce de leite, tirado da panela e estirado em papel manteiga. Uma cidade
acabara de sair do forno e estava prestes a ser devorada, mastigada e
deglutida. E assim foi.
Espremidas
entre o palco lisérgico da Rua Santa Rosa, marcando a tabelinha da perdição com o
terminal Fernando Sávio - escrevinhador
cáustico de outros tempos - da Rua Santa
Rosa até o corredor imponente da Barão de Maruim, ruas estreitas carregam o estandarte das
dezenas de cidades esparramadas pelas bandas de Serigy, escrutando os ombros esquinados
do centro. Maruim interpela Capela, Lagarto tabelando com Estância e cortando
Arauá na jante, e segue o entrelace das cidadelas sergipanas que circulam no
coração vagabundo do centro de Aracaju. As guardiãs espreitam, diligentes e
sórdidas, a falsa calmaria da noite boêmia, emperiquitadas e espalhadas
pela Ivo do Prado. Apodrecendo a cada dentada, a cada carro que para. Aquelas damas
sufocadas no corpo masculino, aturando a fleuma dos distintos desta terra.
Zona
norte, zona sul. Duas faces que berram a morte e vida das Severinas, Josés, Marias
e Josefas. Cidade imberbe, jeito de roça grande, carregando os bons e maus
hábitos da convivência humana pelo decorrer da história. Os riscos da batalha
de 13 de julho costurada pelos tenentistas destas bandas, furdunço que dá
alcunha ao bairro nobre defronte à finada praia formosa, morta de praia e formosura, agora elevada à condição de manguezal
e depósito de dejetos de nossa gente. Bairro fétido de bosta nos finais de
tarde e início de maré, o excremento grupal que percorre a Pedro Paes da
Azevedo arranhando as colunas do Batistão em direção ao calçadão, sob pedestres
e calçadas.
Traçando
a curva do Iate Clube sem descolar da tangente, as águas do Rio Sergipe batem
de testa com o mar e o Poxim numa só pareia,
travando o risca faca aguado de um trio nordestino. Zabumba, triangulo e acordeom,
a sinfonia estremecendo a ponte da Coroa do Meio, as pedras na platéia, imóveis,
amedrontadoras.
Os indignados que berram nos calçadões e partem das praças, embebidos na convicção roja, portando bandeiras e gritos de outro mundo possível, arrastando os pés surrados pra despachar suas agonias na porta do Palácio na ponta da Hermes Fontes. Aos que disparam do Santa Isabel em despedida dos que partiram, acenando para a morte no passo acelerado na defesa de suas próprias vidas.
Os indignados que berram nos calçadões e partem das praças, embebidos na convicção roja, portando bandeiras e gritos de outro mundo possível, arrastando os pés surrados pra despachar suas agonias na porta do Palácio na ponta da Hermes Fontes. Aos que disparam do Santa Isabel em despedida dos que partiram, acenando para a morte no passo acelerado na defesa de suas próprias vidas.
A
Atalaia dos vendedores de rede, amendoim e castanha, dos que assam queijo coalho, dos repentistas. Os operários
do sol, graúdos e miúdos, lascando o
sustento na moleira quente e desviando o corpo dos que se encharcam nas carnes
de caranguejo, dos siris e ostras do mar raso, amarronzado, martelando a fome
no casco, chupando a seiva que escorre pelos dedos no alívio da folga merecida.
A
lama surrada das vilas flambada no mangue, esquivando da dentada dos aratus e teimando
em deslizar sobre a terra aguada a dois metros abaixo do nível do mar. A chuva
cai transbordando os canais, Veneza nordestina engarrafando o final de tarde e
retardando o tão aguardado retorno ao
claustro sacro-santo dos lares de cada um, após toneladas de esforço que lateja
nas costas. Os prédios tomam o mangue de assalto, formando coroas, meios e
jardins da tão temida especulação imobiliária. Progresso da desordem.
Os
meninos e meninas de rua, arremessados nas praças e ônibus da capital, cedendo
a bala doce e o ócio merecido da infância aos apelos do sustento, do bucho que
estala e pede. Os pássaros da Tobias Barreto que clamam por alforria, que
cantam, bradam e mordem as grades com galhardia, em vão. Os estados brasileiros
que fazem do Bugio um verdadeiro palco de batalha naval. As estátuas solitárias
e invisíveis dos homens desta terra, distintos ou não, vigiando as praças da
cidade. O coro alegre descontente dos
artistas da terra, preteridos pelo coro de outras terras que não cantam nossas
dores e alegrias.
Cidade
dos servidores, dos operários, dos ambulantes da General Valadão. Cidade bonita
e feia, terra de amor e ódio, de exploração e coice desembestado de nossa luta
por direitos. Dos moradores da zona de expansão, dos usuários de transporte coletivo,
dos moto-taxistas, dos usuários de ciclomotores e ciclistas, dos rodoviários.
Todos chegando e partindo, vivendo, suportando, morrendo e sepultando.
A
carne doce travada na mandíbula, a agonia libertária das araras. Aracaju, nome
tupi. Cento e cinqüenta e sete anos nas costas e uma penca de séculos a
desembocar em mares futuros. Pois que seja.
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