segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A boa peleja dos netos de Aliete


Por Henrique Maynart*

A vida seguia estabanada e esvoaçante na época em que fui marcado naquele post  maldito e oportuno,   que resgatava os cheiros e as gaitadas,  as imagens e sons  de antigas euforias. Aquele post que raspava com a navalha do tempo, surpreso e esbaforido, o fundo carcomido do pote da memória. Facebook dos meus pecados.

 Todos devidamente marcados, identificados e intimados a curtir e comentar aquele encontro postado no mural de Gui, e ai de quem não agisse como manda a etiqueta das redes sociais. Era melhor curtir.  Tal como esperado todos os marcados curtiram, comentaram e reviveram aquela imagem, cada um a seu tempo. As cores parcas descoladas do papel de filme, as espinhas que habitavam o rosto, o semblante abobado daqueles moleques, todos saciados das pequenas delícias de um feriado sassaricado na malinagem e defumado na estufa do verão. Os mais novos devidamente posicionados no colo dos mais velhos, risonhos e pretos de sol.  Eu e Nana sentados na cadeira branca denotando uma falsa imponência, o resto de pé. Eu estava  trajando uma camisa preta em pleno domingo, a boina, os óculos de Pimba que sustento até estes dias - separando os olhos míopes do resto do mundo-  exalando a arrogância dos dissonantes e, pra fuleirar de vez com o que resta da minha dignidade,  com um dedinho na boca que punha em cheque a procedência da sexualidade.  Esta vocação pra dissidência ainda me mata.  Bem, ali estavam os netos de Aliete. Todos não, mas uma ruma boa.

Daquela foto brotava mais história que chuchu na cerca. As peladas na casa da praia, os banhos de mangueira, as peripécias de Brejo Grande, a patrulha salvadora na caça de “João da Lavina”, criatura célebre que aterrorizava a noite dos ribeirinhos à margem direita do Velho Chico.  Além do útero da mesma vó como ponto de partida para este mundo cão,  o útero gasto e surrado da única mulher sã que esta família produzira em três gerações, os netos de Aliete dividiam as camas, os livros do colégio, as revistinhas da turma da Mônica, alguns feitos heróicos e façanhas malinas, algumas bem malignas. Feitos dos tempos da fúria carola de tia Luizete (é, mamãe era foda nos castigos) das patadas desembestadas de tio Kiko  e do chinelo engatilhado da notável Silvana, a tia caçula e temida por todos nós,  que nunca vacilava quando se tratava em dar uma prensa na molecada.

Eis que, em meio àquele dejavú eletrônico coletivo,  surge a idéia de juntar a primaiada num canto só. O “Encontro dos Netos de Aliete”, que era pra juntar aquele bando de marmanjo espalhado no vento, enfurnados na urgência de engolir o pão amassado pelo “coisa ruim” e garantir a sobrevida do mês, pra poder respirar até morrer sem direito a um suspiro qualquer. Evento no facebook, slogan e mote: Corra que Tia Silvana vem aí! Tudo cortesia da Maynart Produções!  Nosso Negócio é um espetáculo, mas nossa receita é uma tragédia  (Chupa essa Del!), tudo nos trinques. Providos de algum alvoroço e tomados pela disposição,  a primaiada sela o bendito do dia, hora e local do tão entusiasmado encontro.  Dez de dezembro em Brejo Grande na comemoração da festa da padroeira:  Nossa Senhora da Conceição, Oxun para os umbandistas e candomblecistas. Ê Brejo Grande, coração da foz do Velho Chico, berço de uma fatia generosa da infância daqueles marmanjos.
Eis que a data embalada por todos nós chacoalhou meu corpo fatigado naquela manhã de sábado.  Cabeça estalada, boca seca e sono de sobra. Ressaca do cão. Posto os pés na quentura regimental de Brejo Grande, a casa de vó - na esquina em frente à Praça da luz, no bar de finada Dolores-  foi a nossa concentração.  A primaiada ia chegando, se abraçando e abarcando sua respectiva lata de cerveja. Ali não tinha nome nem oficio nem status, só  histórias e os velhos apelidos de infância, carinhosos e vergonhosos por natureza.  Codinomes de outros tempos.

 Assim como em qualquer narrativa o encontro carregava seus próprios personagens. Del era o mais velho dali, o que transpirava algum respeito e lhe acarretava alguma responsabilidade sobre os demais. Das figuras mais cômicas que já vi neste mundo.  O cara que me fizera pisar no Batistão pela primeira vez, os pés ainda meninos, pra ver um Sergipe e Confiança qualquer.  As primeiras revistinhas de putaria que li foram as dele.  Estava acompanhado de Acácia, amor recente, a fim de revelar à moça as raízes de seu sorriso falho, dos olhos esbugalhados e da cabeça grande que carrega sobre os ombros. Uma tática simples de se entender: “Se ela agüentar este bando de marmanjo amarelo sem dar um pio a gente casa em dois tempos”. Acho que deu certo, aguardo o convite pro ajuntamento.

Rafinha era, digamos assim, o “arquiteto meio lelé” do comboio. Cara legal, inteligente e esforçado, meio estabanado também. Hoje está forte feito um boi, mas na infância me rendera bons caldos na piscina. Aquele ali sofreu na minha mão.  Miguelzinho é o novo Bad Boy da primaiada, tomou meu posto e eu nem havia reparado.  Olhar cerrado e peito estufado, a boca saliente e uma disposição pra pista que só ele.  Alfredinho, irmão do Bad Boy, é o mais recluso de todos. Pouca fala da voz grossa, o riso crente que incomoda algo, alguém ou a ele mesmo no ato de escancarar os dentes. Pouco  bebe, pouco conversa e lê às pencas. Julinha, galega esguia dos olhos da cor do Velho Chico na hora da cheia, era a caçula do bando e a única mulher dentre os primos. Espírito de pagodeira no auge do fervor colegial. Costumava brincar de cavalinho no meu ombro quando ainda miúda, galopando nas dependências da antiga casa da Rafael de Aguiar, capaz de  lembrar. Os filhos do visigodo tio Kiko, visigodo e astuto na mesma medida do paradoxo.  Lucianinho me pareceu o mais centrado dos primos. Baixinho, truncado e de olhar minguado, sóbrio e sereno, calculando até o mais singelo aperto de mão. Gorete, sua companheira, segue o mesmo compasso no trato. Casal simpático.

Gui sempre teve pinta de primo prodígio. Filho de tia Rita, madrinha queridíssima de quase todos os primos, inclusive deste que vos digita. Riso fácil de arrancar e algumas tiradas bem fantásticas em meio a um gole e outro de cerveja, puxara a malandragem de Del e a gentileza de Nana. Moleque bom.  E finalmente este que vos digita, escrevinhador imberbe com alguma fama de marginal, boca suja e pouca paciência.

Bebemos, rimos e nos revisitamos em meio à imponente mesa na cozinha de vó, daquela casa antiga que carregava o aroma acumulado de outras vidas. As canecas de louça de vô na sala, as velas e imagens de Cristo na companhia feminina de algumas Nossas Senhoras,  disputando espaço no santuário na base do tapa.  Casa de interior, quartos grandes e sala reta, dorso comprido, o azulado claro dos azulejos grudados na parede velha. A pia de mão ao lado da mesa da cozinha. Os gaiamuns no quintal, os pés de carambola do outro lado do muro, as mesmas árvores responsáveis por algumas fugidas e joelhos ralados. Fruta roubada é mais gostosa. As galinhas de finada Dolores, velhinha doce que só ela, abria o quintal pra que ajudássemos a jogar o milho e saciar a fome das danadas das galinhas. Do lado de fora o mais do mesmo. As ruas estreitas, a bosta de cavalo e o olhar vigilante das senhoras escoradas na janela.  Informantes assíduas e diligentes de vó. “Olhe, os meninos de Aliete bebendo a esta hora da tarde!” Ruma de futriqueira, bom de arranjar uma trouxa de roupa pra desocupar a mente dos comentários sórdidos. Os carroceiros de sempre, as carroças que corríamos pra pegar o vácuo e curtir uma carona até lugar nenhum. Nana sempre se estropiava nestas horas, nunca vi ninguém com tanta facilidade pra dar de bunda no chão. 
Fiquei de partir nas primeiras horas de sol do domingo seguinte, perdi a hora,  os compromissos e a oportunidade de fugir de mais uma chamada de  minha organização. Estava na merda, chafurdemos então. Estava agendado para aquele dia o passeio de tototó até o Cabeço,  junto com os primos, os primos dos primos, os observadores permanentes e uma figura mórbida que respondia pela graça de “Beleu”, moribundo de procedência duvidosa e de empatia deplorável. A aparência tão bela quanto o apelido. Trocando em miúdos, um cara chato, feio pra caralho e que brotou da terra naquele tototó.

Encharcados de álcool no isopor que mais parecia uma tartaruga, embarcamos  no distinto tototó de “Seu Jorge” e  saímos deslizando pelo Velho Chico em direção à foz da banda alagoana do rio. As mangueiras naturais no caminho, o rajado incômodo do motor, o excesso no corpo e um sol satânico sobre nossas cabeças. Finalmente decidiram ligar o som, fudeu.  Me recolho solenemente à minha chapação por boa parte do tempo, a água da garrafa que acompanhava o tremido do motor,  os compromissos perdidos e os desafetos que me aguardavam na volta para Aracaju.  Com o destino na ponta dos olhos estava na hora do tradicional pulo antes do desembarque e  alcançar a margem a nado.  Zarpamos eu, Gui e Del.  O problema de revisitar os afãs de outros tempos é que, geralmente, no presente a mente e o corpo são de fato diferentes, Belchior estava certo mais uma vez. Não se trata mais daquele corpo e daquele fôlego juvenil que transformava algumas braçadas em moleza, e assim foi. Quase morremos os três, mas finalmente alcançamos a areia da foz, assustados, fudidos e arrombados.  Experiência de Quase Morte.

O dia seguiu no compasso dos excessos e da fuleiragens familiares. Um primo tal que era conhecido por “JG” na família, aquela aventura sexual a quatro dentro de um chiqueiro, outro que fora encontrado compartilhando prazer bem debaixo do caminhão, pense numa vontade de fuder que não passa.  Umas histórias envolvendo o queijo do Poly Dance e um primo ciumento,  aquele cacete homérico que reunira quase todo mundo há cerca de dois anos a custa de um  pinguço de Piaçabuçu  que, sem lenço  nem documento, incomodava Julinha e provocava Lucianinho ao mesmo passo. Aquele ali apanhou como cachorro.  Excessos e fuleiragens, fuleiragens e excessos,  e o feriado  escorreu como de costume. De volta ao QG de vó, pra fechar com maestria os trabalhos do Encontro dos Netos de Aliete, o rango mais saboroso de todos os tempos, ao menos de todos aqueles dias, cortesia de dona Telma. Não restou pra quem vacilasse. Tempero da terra popularmente conhecido como Larica. Encharcamos a boca  de feijão e carne do sol, cabeça cheia e barriga vazia dá nisso. 

Comemos, dormimos, despertamos e pegamos o caminho de volta às alucinações do mundo cão, dos horários e compromissos, das contas e correntes. Boa peleja aquele enlace dos filhos das tias, dos sobrinhos e afilhados oriundos do útero de vó.  Combinamos o mote do segundo encontro, desta vez em Aracaju, a fim de viabilizar o resto da primaiada ausente em Brejo Grande.  De volta aos nomes e ofícios, às preocupações mundanas do imediato.  Um mundo que não abarca nossos codinomes e malinagens perdidas no elo de nossa infância, onde os conflitos e primazias transcendem a dúvida entre brincar na rua de baixo ou na rua de cima. No estalar das coisas me convenço de que aquele encontro nadava contra a correnteza dos tratos insossos dos dias de hoje, de encontro ao tempo, ao espaço, ao templo de saudações convenientes. Boa peleja aquela dos netos de Aliete, humanizar é preciso.  

Primos, é sempre bom tê-los, conhecê-los de verdade. Se os tiver, não os perca de vista.

*Jornalista, neto de Aliete, filho de Luizete e afilhado de Rita. Codinome Quinho.



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