Por Henrique Maynart*
O
período letivo da universidade brasileira abre alas com o mesmo espetáculo
mambembe, em cartaz há decadentes décadas, duas ou três mãos cheias de tempo e
de tinta escorrendo nos dedos. Os calouros adentrando assustados, eufóricos,
munidos com os previsíveis cadernos de matéria e trafegando em bando pelas
instalações decadentes do Campus, o admirável mundo velho soprando bons e novos
ares na face daqueles que ainda estão se habituando à nova credencial deferida:
Discente, universitário. Os certificados
e colações de grau dos que partem pra nunca mais - ao menos boa parte- as
andanças veteranas da primeira semana, das apresentações e rituais de iniciação.
E a vida vai seguindo na estação do
ensino superior, no caso do Campus UFS São Cristóvão, a vida segue mesmo no
decrépito terminal do Rosa Elze, enfurnando cansaço e correria entre um “Campus-Orlando
Dantas” e um “Tijuquinha” qualquer, com dois “Eduardo Gomes” no meio temperando
o atraso.
Eis
que chega a hora da tradição enfadonha, engenhosidade mórbida denominada trote.
Possíveis definições: 1-Andadura
natural das cavalgaduras, entre o passo ordinário e o galope. 2-Prova, brincadeira a que,
nas escolas e universidades, os veteranos submetem os calouros. Saudações
ao velho Aurélio de guerra. A primeira não cabe em nosso caso, se bem que as
doses cavalares de repressão e intolerância não se encontram em falta nos
campus brasileiros. Basta uma medida firme e audaz dos que lutam por uma educação
pública, gratuita e de qualidade pra arrancar sem dó a máscara catedrática de
alguns senhores, aparentemente sóbrios e distintos, daqueles que se apossam da
comunidade acadêmica à custa de tudo e de todos, escancarando a face carcomida
de nossos carrascos, do olhar em carne viva.
Arrodeios
à parte partamos então para a segunda definição. Coisa besta de se entender: Os veteranos, que
em geral cursam do segundo ao quarto período, sacaneiam os calouros com tinta, “prendas” (
nome mais patético) e ações inoportunas. Arrecadar dinheiro pra bancar a pinga
surrada dos veteranos, rifa dos bichos, morrer afogado na piscina do campus,
dentre outras atividades recreativas. Creia. Todo este calhamaço opressor pra marcar
com a chave traumática de ouro a admissão ao ensino superior, para o gozo
inferior dos veteranos rotineiramente sacaneados no ano passado por outros
algozes, que, por conseguinte, seguiram achincalhados por outros predecessores,
marcando o compasso torpe da violência de ano em ano, período a período.
Com
quantos quilos de medo esta ação coletiva e desumana por tabela, fincada a
ferro quente em nossos braços e pernas, alcançou o status de tradição em um
ambiente que deveria, por excelência, marcar o lócus privilegiado da produção e
reprodução formal de conhecimento? Rituais
de iniciação são típicos de um povo que se ressignifica a todo instante no
passo da sobrevivência, da produção material e imaterial da vida social, mas
nem todos se justificam e sem legitimam na cantilena imunda dos que sustentam
qualquer tradição por sustentar, autômatos e fétidos de boca.
Não
que o poder publico não cumpra com o seu papel de fiscalizar os excessos rituais,
a fim de evitar os crimes hediondos e maiores abusos durante as calouradas, mas
não basta e todos nós bem sabemos. Não que os referidos “trotes sociais” não
carreguem a boa intenção de ajudar a quem quer que seja, uma instituição de
caridade, uma ação de preservação da universidade e por aí vai, mas a perpetuação
de uma prática que inferioriza e submete outras pessoas ao escárnio
achincalhado, reprodutora de ações machistas e homofóbicas, que coisifica o
corpo das mulheres e animaliza a todos em geral- daí a aplicação o termo “bichos”-
é simplesmente inaceitável, repugnante, produtor de escarro. A raiz do problema
é a raiz do fato. Sejamos radicais por excelência e essência, o velho Marx já
preconizava.
O
movimento estudantil brasileiro e a comunidade acadêmica em geral não devem
medir esforços, braços, dentes e músculos para acabar com a prática do trote. Não
há possibilidade de ressignificação deste bruto ritual, falo isso com a boca
cheia e segura dos radicais insistentes da vida. Universidade é, ou poder ser,
o lócus da transformação, de conhecer o novo a todo instante, de produzir ciência,
da criticidade desavergonhada, aquela criticidade fundamental na construção de
uma outra sociedade, de outra vida, de outros afetos. A vida já carrega muitos trotes nas costas: O
trote de não ter professor disponível na sua disciplina ofertada, o trote de um
projeto pedagógico atento apenas às demandas de um mercado cão, o trote de mais
um corte bilionário e seqüencial para a pasta da educação pública, cortesia da
Dilma Roussef, do reajuste da passagem, da privatização dos serviços acadêmicos,
dos tubarões do ensino. Este escárnio todo que precisamos combater com a mesma
diligencia, sangue no olho e cabelo na venta.
Termino
de riscar estas parcas sílabas em direção aos calouros das instituições públicas
e privadas, arremessadas nas ruas e avenidas: Sejam bem vind@s à universidade,
briguem pelo seu curso e não se deixem animalizar por este troço nefasto
chamado trote. Se te tratarem por bicho, sigam o conselho de George Orwel e
organizem os demais bichos, rompam o dia, expulsem os humanos e tomem a fazenda
de suspiro e assalto e, pelo amor de Marx, não abram espaço para um porco
Napoleão qualquer controlar suas vidas.
* Um sergipano muito do indignado com esta porcaria de trote
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