terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Trote: Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?


Por Henrique Maynart*


O período letivo da universidade brasileira abre alas com o mesmo espetáculo mambembe, em cartaz há decadentes décadas, duas ou três mãos cheias de tempo e de tinta escorrendo nos dedos. Os calouros adentrando assustados, eufóricos, munidos com os previsíveis cadernos de matéria e trafegando em bando pelas instalações decadentes do Campus, o admirável mundo velho soprando bons e novos ares na face daqueles que ainda estão se habituando à nova credencial deferida: Discente, universitário.  Os certificados e colações de grau dos que partem pra nunca mais - ao menos boa parte- as andanças veteranas da primeira semana, das apresentações e rituais de iniciação.  E a vida vai seguindo na estação do ensino superior, no caso do Campus UFS São Cristóvão, a vida segue mesmo no decrépito terminal do Rosa Elze, enfurnando cansaço e correria entre um “Campus-Orlando Dantas” e um “Tijuquinha” qualquer, com dois “Eduardo Gomes” no meio temperando o atraso.  

Eis que chega a hora da tradição enfadonha, engenhosidade mórbida denominada trote. Possíveis definições: 1-Andadura natural das cavalgaduras, entre o passo ordinário e o galope. 2-Prova, brincadeira a que, nas escolas e universidades, os veteranos submetem os calouros. Saudações ao velho Aurélio de guerra. A primeira não cabe em nosso caso, se bem que as doses cavalares de repressão e intolerância não se encontram em falta nos campus brasileiros. Basta uma medida firme e audaz dos que lutam por uma educação pública, gratuita e de qualidade pra arrancar sem dó a máscara catedrática de alguns senhores, aparentemente sóbrios e distintos, daqueles que se apossam da comunidade acadêmica à custa de tudo e de todos, escancarando a face carcomida de nossos carrascos, do olhar em carne viva.

Arrodeios à parte partamos então para a segunda definição.  Coisa besta de se entender: Os veteranos, que em geral cursam do segundo ao quarto período,  sacaneiam os calouros com tinta, “prendas” ( nome mais patético) e ações inoportunas. Arrecadar dinheiro pra bancar a pinga surrada dos veteranos, rifa dos bichos, morrer afogado na piscina do campus, dentre outras atividades recreativas. Creia. Todo este calhamaço opressor pra marcar com a chave traumática de ouro a admissão ao ensino superior, para o gozo inferior dos veteranos rotineiramente sacaneados no ano passado por outros algozes, que, por conseguinte, seguiram achincalhados por outros predecessores, marcando o compasso torpe da violência de ano em ano, período a período.

Com quantos quilos de medo esta ação coletiva e desumana por tabela, fincada a ferro quente em nossos braços e pernas, alcançou o status de tradição em um ambiente que deveria, por excelência, marcar o lócus privilegiado da produção e reprodução formal de conhecimento?  Rituais de iniciação são típicos de um povo que se ressignifica a todo instante no passo da sobrevivência, da produção material e imaterial da vida social, mas nem todos se justificam e sem legitimam na cantilena imunda dos que sustentam qualquer tradição por sustentar, autômatos e fétidos de boca.

Não que o poder publico não cumpra com o seu papel de fiscalizar os excessos rituais, a fim de evitar os crimes hediondos e maiores abusos durante as calouradas, mas não basta e todos nós bem sabemos. Não que os referidos “trotes sociais” não carreguem a boa intenção de ajudar a quem quer que seja, uma instituição de caridade, uma ação de preservação da universidade e por aí vai, mas a perpetuação de uma prática que inferioriza e submete outras pessoas ao escárnio achincalhado, reprodutora de ações machistas e homofóbicas, que coisifica o corpo das mulheres e animaliza a todos em geral- daí a aplicação o termo “bichos”- é simplesmente inaceitável, repugnante, produtor de escarro. A raiz do problema é a raiz do fato. Sejamos radicais por excelência e essência, o velho Marx já preconizava.  

O movimento estudantil brasileiro e a comunidade acadêmica em geral não devem medir esforços, braços, dentes e músculos para acabar com a prática do trote. Não há possibilidade de ressignificação deste bruto ritual, falo isso com a boca cheia e segura dos radicais insistentes da vida. Universidade é, ou poder ser, o lócus da transformação, de conhecer o novo a todo instante, de produzir ciência, da criticidade desavergonhada, aquela criticidade fundamental na construção de uma outra sociedade, de outra vida, de outros afetos.  A vida já carrega muitos trotes nas costas: O trote de não ter professor disponível na sua disciplina ofertada, o trote de um projeto pedagógico atento apenas às demandas de um mercado cão, o trote de mais um corte bilionário e seqüencial para a pasta da educação pública, cortesia da Dilma Roussef, do reajuste da passagem, da privatização dos serviços acadêmicos, dos tubarões do ensino. Este escárnio todo que precisamos combater com a mesma diligencia, sangue no olho e cabelo na venta.

Termino de riscar estas parcas sílabas em direção aos calouros das instituições públicas e privadas, arremessadas nas ruas e avenidas: Sejam bem vind@s à universidade, briguem pelo seu curso e não se deixem animalizar por este troço nefasto chamado trote. Se te tratarem por bicho, sigam o conselho de George Orwel e organizem os demais bichos, rompam o dia, expulsem os humanos e tomem a fazenda de suspiro e assalto e, pelo amor de Marx, não abram espaço para um porco Napoleão qualquer controlar suas vidas. 

* Um sergipano muito do indignado com esta porcaria de trote

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