Por Henrique Maynart*
Sexta-feira, 17 de fevereiro, primeira noite dos festejos momos de carnaval. Ela, 25 anos, acompanhara as atrações da Pedro Calazans noite adentro. Ela, 32 anos, trabalhara até as primeiras horas da madrugada daquele sábado, pretendia gozar da ultima gota que sobrara da festa ao lado de seu afeto, nada mais razoável. Assim como milhares de casais aracajuanos, aquelas duas seguiram o bom conselho da "Velha Marcha do Rasgadinho" de Deilson Pessoa, e partiram para o encontro na Praça da Bandeira, no olho da rua que abarcava as apresentações culturais.
Um abraço, um beijo e alguma alegria esboçada no rosto daquele encontro notívago. Eis que ela é surpreendida por um tabefe seco pego de costas, o tapa seguro da mão de um policial militar do alto de sua viatura, automóvel sem o devido emplacamento tal como todas as viaturas da PM sergipana. Ela partiu em defesa da companheira, “da próxima vez passa por cima”, bradou. Foi a deixa daqueles trabalhadores fardados, a cidade estava entregue ao crime.
Tenente Adilson, Soldado Castro, agentes da lei e da ordem. Desceram do alto da viatura, encaminharam aquelas duas ao vão próximo ao Box do policiamento da festa. Sessões de espancamento. Pontapés, puxões de cabelo, palavras de baixo calão. “Por que vocês estão fazendo isso?” gritava ela. “O que foi que fizemos?” suplicava a outra ela. “Colocaram a gente dentro da viatura e no meio do caminho param. O tenente me entregou o meu "arco" e, no mesmo tempo, ele e o soldado me deram um tapa na cara. Nunca na minha vida fui tão humilhada”, afirmou.
Os dois oficiais encaminharam aquelas duas à delegacia plantonista da capital, provocam o boletim de ocorrência. Causa originária do boletim: Desacato à autoridade. “Eles disseram que foi desacato. No mesmo dia saímos com um BO assinado pelo delegado, autorizando a procurar o IML para fazer o exame de corpo de delito.” Não, não era o bastante. Saíram da plantonista, aturdidas, ela se atrapalha, se acidenta e fratura o braço.
Domingo, dois dias após o ocorrido, o casal se dirige ao Instituto Médico Legal. Não tinha médico, nada legal. Partiram para a Ouvidoria da Policia Militar, não havia que as ouvisse, sem funcionário. Dados confirmados pela Assessoria de Comunicação da PM. São orientadas a retornar na sexta-feira para o exame de corpo de delito e se dirigirem ao quartel da corporação, a fim de provocar a Corregedoria da Policia Militar. Sem médico mais uma vez na sexta-feira. Conseguem um laudo do Nestor Piva dias depois, laudo que fora encaminhado ao Juizado Especial Criminal de Aracaju- JECRIM. Informações desencontradas, serviço deficiente e a humilhação cravada no corpo daquelas duas. Instituição curiosa esta: Bate diligente, escuta às tabelas.
Ainda aturdidas, as duas denunciam a agressão ocorrida nas redes sociais, postando declarações e imagens do tratamento abusivo, tatuagens de uma noite de violência. O caso não emplacara a devida atenção na imprensa sergipana, salvo algumas matérias em um ou dois portais de noticias espalhados pelo estado.
A nossa insegurança
De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado no ano de 2011, os investimentos na pasta da Segurança Pública no estado de Sergipe obtiveram um crescimento de 48,36%, entre os anos de 2009 e 2010. O quadro salarial dos policiais militares e civis sergipanos conquistou um avanço importante, mas o esqueleto do maquinário continua o mesmo. Os homicídios aumentam 23% em Sergipe na mesma época. A taxa de assassinatos saltou de 27,5 mortes para cada 100 habitantes em 2009 para 33,8 homicídios em 2010. Parafraseando o colega Cristian Goes, o obvio: A cultura da violência só produz mais violência, e dentre elas o crime de beijar nossos amores em espaços públicos. Estruturação da pasta, garantia de carreira e formação humanizada a estes trabalhadores da segurança pública, fomentadores de uma cultura da violência inclusive contra si mesmos. Constituição de polícia única e desmilitarizada, fortalecimento dos conselhos comunitários de segurança pública.
A aprovação da PEC 300, que garantiria o piso salarial nacional aos policiais militares, civis e bombeiros seria um passo importante neste sentido, mas esta PEC não se encontra na agenda de Dilma Roussef e no interesse de alguns governadores, dentre eles Jacques Vagner(PT-BA) e Sergio Cabral(PMDB-RJ), ironicamente os governadores dos estados que apresentam os maiores índices de homicídios e corrupção policial, Bahia e Rio de Janeiro.
Importante ressaltar que, no quadro atual, a PM sergipana desrespeita os padrões da Organização das Nações Unidas – ONU, que afirma que o número ideal de agentes em uma população deve ser de um para cada 250 habitantes. Este nosso estado a aplicação destes padrões corresponderia à um efetivo de 8.272 policiais militares, e que hoje conta apenas com um terço efetivo proposto pela organização internacional, cerca de 4 mil e quinhentos oficiais. Concurso público?
Um país homofóbico
De acordo com o relatório do Grupo Gay da Bahia-GGB, que apresenta dados relativos ao ano de 2011, o Brasil é o campeão mundial de assassinatos a homossexuais, os ditos crimes de ódio. Em 2011 foram contabilizadas 282 ocorrências de discriminação com base na orientação sexual pelo país afora. Dentre elas, 19,5% das agressões foram praticadas por órgãos e autoridades governamentais, em primeiríssimo lugar nas estatísticas.
Enquanto isso, em Brasília, a presidente Dilma articulou nos idos de 2011 o arquivamento do PLC 122, que previa para a criminalização da homofobia, juntamente com o senador Magno Malta (PR-ES), representante da bancada evangélica. Para os desavisados a bancada evangélica corresponde a segunda maior bancada do congresso nacional, logo atrás da eminente bancada ruralista. No início dos trabalhos parlamentares, o deputado goiano João Campos (PMDB) apresentou um projeto esta semana que pretende “permitir que a homossexualidade seja tratada como um transtorno passível de cura”. Ou seja, trata-se de um projeto que trata a homossexualidade como patologia, fortalecendo a lógica homofóbica da intolerância.
O projeto de lei vai de encontro à resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia-CFP, que estabelece como paradigma à psicologia brasileira que a homossexualidade não seja enxergada como patologia, desautorizando os psicólogos brasileiros a submeter pacientes a qualquer “tratamento de cura à homofobia”. O projeto conta com o apoio do conjunto da bancada evangélica no congresso, composta pelo deputado sergipano Pastor Heleno (PRB-SE). O parlamentar sergipano ainda não declarou ser favorável ou não ao referido projeto, mas se o deputado optar por seguir a bancada sem sombra de dúvidas dará o voto favorável ao projeto. Ou seja, caso aquelas duas que sofreram abusos por parte da PM sergipana solicitassem acompanhamento psicossocial, elas poderiam ser recebidas por um terapeuta que, ao invés de lidar com o stress pós-traumático provocado pelos abusos, o profissional poderia muito bem voltar todos os conflitos presentes naquelas duas no intuito de “livrá-las da sua homossexualidade”. Pelo amor de deus. Amor, esta palavra custa nos dias de hoje.
E o povo no meio deste bolo todo?
Imaginem vocês, heterossexuais, cultivadores de seus amores, o quão desumano seria sentir qualquer coisa de pânico e temor dentro de seus corpos, pelo simples fato de carregar a mão de seus companheiros e companheiras em via pública? Imaginem a agonia daquelas duas, resguardadas no anonimato, em meio às agressões provocadas pela reação de uma bituca afetuosa. Isso está certo? Brado definitivamente que não. O estado é laico, garantamos a sua laicidade em todos os aspectos.
O melhor amigo do povo é o povo organizado, afirmação melhor não há. Os setores da sociedade civil organizada, o movimento LGBT precisa responder à altura e reivindicar, garantir as providências devidas junto às autoridades competentes. Um “beijaço” gay na porta da Secretaria de Segurança Pública viria a calhar divinamente, fica a sugestão. Que a Corregedoria da Policia Militar instaure inquérito, afaste os oficiais envolvidos e encaminhe as providências possíveis, que cumpram com as atribuições que lhe foram delegadas. Que aquelas duas, mulheres e sergipanas como todos nós, tenham pleno direito à indenização e atendimento psicossocial, que políticas de combate à homofobia tomem corpo e fôlego nas terras do surrado cacique Serigy. Que no estado de Sergipe ninguém ouse a prestar o boletim de ocorrência motivado pelo desacato à homofobia, que possamos viver e gozar plenamente dos nossos direitos e deveres, que possamos amar a mudar as coisas, que é o que interessa mais no final das contas.